16/05/2019

TBM-06 Hideto Kanai Group - "Q" (1971)


Título: "Q"
Data: 1971
Artista / Grupo: Hideto Kanai Group
Nº do Catálogo: TBM-6, TBM-2506 (Reedição 1977), PAP-20032 (Reedição 1982)

Line-up:
Hideto Kanai - Contrabaixo
Tadayuki Harada - Saxofone Barítono (01)
Masamichi Suzuki - Trompete (01)
Allan Praskin - Saxofone Alto (01,02)
Kosuke Mine - Saxofone Alto (01,02)
Motohiko Hino - Bateria (01,02)
Choyo Kanda - Xilofone (02)
Hiroshi Yamazaki - Bateria (03,04)
Hiroshi Koizumi - Flauta (04)
Masayuki Takayanagi - Guitarra (04)

Faixas:
01 - April Song For Kanai, Zui-Zui-Zui-Du-Tubadaba (13:50)
02 - Q (10:03)
03 - Kaleidoscope (05:59)
04 - Meditation (12:12)


Da última vez que vos deixámos, tínhamos visto como a borbulhante cena estrangeira da free form deixava o seu lastro na mente influenciável dos jovens intérpretes japoneses. O próximo álbum da companhia dos ratinhos seria a prova provada como as energias desconstrutivas de Ornette Coleman não tardariam a chegar ao país do sol nascente, desta feita transfiguradas e reinterpretadas, mais ao sabor de um shakuhachi a saudar uma onda gigante do que notas de uma agressividade embaciada num clube apertado da Midtown Manhattan. Esta sessão reuniu um conjunto de músicos em torno de Hideto Kanai, contrabaixista ligado à avant-garde uma década antese acaba por funcionar como um pot-pourri de estilos e variações dentro de uma musicalidade mais atonal. Os intérpretes vão mudando de faixa em faixa, passando o testemunho uns aos outros. O grande maestro é Kanai, que lidera tudo com grande lucidez. Ouçamos.

Em April Song For Kanai, Zui-Zui-Zui-Du-Tubadaba (se o leitor não sorri com este título, então duvidamos do seu sentido de humor), o som acornetado da secção de sopro rememora uma batalha sonora que podemos não estar preparados para entrar. É o trompete de Masamichi Suzuki que nos avisa do que vai acontecer. Kanai, após o estrilho da bateria de Motohiko Hino, dá-lhe no contrabaixo, inclusive serrando as cordas para adicionar gravidade a uma tal inquieto início. A surpresa vem a seguir quando os instrumentos de ar nos empurram para um turbilhão sonoro. Já encalhámos os ouvidos neles, tontos, embriagados. A bateria marca o ritmo depois, o contrabaixo swingué contradiz a ansiosa atonalidade anterior. Eis que o alto de Allan Praskin (o intruso gaijin que vem lembrar aos japoneses que Eric Dolphy não morreu) põe em causa todas as dúvidas. A sua maneira de enrolar as notas não nos deixa quietos. Se esta maneira de encarar as notas fosse um animal seria um réptil, rastejando e enrolando na terra, só sabendo se é veneno depois da mordida. Eis que o nosso já conhecido Kosuke Mine lhe sucede no solo, também de alto. A sua clareza é a de uma ave. Voando e migrando sonoramente nos céus, com um toque de brincadeira verdadeiramente admirável. Este segundo solo ganha ao anterior, na nossa humilde audição. Mine e Praskin dialogam já na secção final. Um falcão e uma serpente partilhando o palco. É preciso ouvir os entrosamentos com cuidado. A despeito da violência sonora que acontece com o regresso de todos os outros instrumentos (e do trompete marcial e "sem brincadeiras" de Suzuki), há aqui uma harmonia esplendorosa, uma beleza controlada no caos.

Sai o trompete e quedam-se todos os outros instrumentos na segunda faixa. Q, que dá nome ao álbum (não por acaso, diríamos, porque se trata da melhor porta de entrada para o que aqui se está a fazer), começa nervoso com a introdução do xilofone inquietante de Choyo Kanda, o peso stressante das cordas de Kanai e os saxofones que se agigantam à nossa frente como uma má premonição. O ritmo dos pratos de Hino declinam para a confusão de saxofones em rodopios místicos, quais sufis dourados. Solo voador de Mine que não teme as notas mais altas, em consonância com uma bateria periclitante. Sucede-lhe Praskin - já mencionámos Dolphy, certo? - num longo solo. Ocasião para Kanai tornar as notas em tempestade marinha enquanto que o americano cria uma onda maior, composta por todas as pequenas ondas enroladas. Às tantas, entramos no domínio do super-sónico. A banda aquece e, veloz, precipita-se para o choque como um comboio de alta velocidade sem travões. Nesses momentos em que todos os instrumentos tocam para o seu canto, quase ignorando os outros numa espécie de apogeu do egoísmo, alcança-se uma expressividade notória, cúmulo da atonalidade. A dissonância de Kanai, no final, faz-se acompanhar pelos dois saxofones, lamentando, tristes, quase culpados por despenderem tanta energia vital, tanta intensidade sem limites.

Depois da tempestade vem a bonança? Talvez. Em Kaleidoscope, é como se todo o palco mergulhasse no escuro e só uma pequena faixa de luz iluminasse o nosso contrabaixista. Sozinho com as suas cordas, Kanai sola, auxiliado pelos apontamentos muito pontuais da bateria de Hiroshi Yamazaki (que substitui Motohiko Hino de ora em diante). Nesta faixa, relembramos certamente a conhecida acepção que o segredo da música reside na alternância entre som e silêncio. Poderíamos mesmo dizer que Kanai faz um dueto com o silêncio, calm and collected, atento aos intervalos e aos jogos da expectativa. A percussão de Yamazaki toma a dianteira lá para o meio, tudo se assemelha a uma festa primitiva, sons que nos transportam para África e não para o Japão. Mas Kanai é universal e sincretista. O seu instrumento brinca com as escalas por cima da marca geográfica do baterista, parte para outras sonoridades e continentes. Um contrabaixo sem passaporte ou nacionalidade.

A faixa mais japonesa do álbum, Meditation, vira do avesso a flauta transversal. Hiroshi Koizumi é mais monge budista, contemplando com o seu som um jardim de areia e pedra, do que um jazzman convicto do seu swing. É uma faixa que, como o seu nome indica, nos transporta para dentro de nós numa noite de lua cheia em que apetece escrever um haiku. A flauta torna-se, por vezes em shakuhachi, noutras num instrumento digno de Stravinski ou outro compositor erudito contemporâneo. Quando ela finda, chegam influências da música concreta e vários sons se unem numa percurssão colectiva que não nos largará até ao fim. Masayuki Takayanagi, conhecido bad boy da atonalidade, dedilha uma guitarra cada vez mais inopurtuna, juntando-se à festa desorganizada. Mas é o regresso de Koizumi que aguardamos com expectativa. É o som desta flauta hipnotizante que clarifica a confusão mundana dos objectos sonantes. É esse som inquietante que nos guia e nos ilumina, como um súbito satori, um sinal de transcendência no meio da violência do mundo dos fenómenos. É preciso abstrair-nos do ruído e tentar encontrar a beleza sublime. Através do sopro, portanto. A secção final de Meditation, em que nos deparamos só com Kanai e Koizumi, é já pura oração. Namu amida butsu também para vós, caros budistas do jazz.

Classificação: ****
Melhor Solista: Hideto Kanai
Melhor Faixa do Álbum: Q

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